América de pólo a pólo em bicicleta, 1ªparte

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Idílio Freire, um português de 44 anos natural de Pombal, está a realizar uma extraordinária aventura de bicicleta ligando o continente americano de pólo a pólo. A viagem foi iniciada a 24 de Julho no norte do Canadá (Inuvik) e terminará dentro de uns 15 meses no sul da Argentina.Blogue do Idílio Freire: http://bacalhaudebicicletacomtodos.blogspot.com/

Partida (23.7.2010)

Estou de partida de Inuvik, pela Dempster Hwy, a caminho de Dawson City. Espero ter comigo tudo o indispensável (pelo menos o repelente para ursos! comprei). Como é previsível que nas próximas duas semanas esteja praticamente incontactável, deixo esta breve mensagem para tranquilizar os amigos…

Dampster Hwy

Este texto é um teste. À vossa paciência…Fotos, vai ter poucas, pelo menos enquanto não resolver um problema técnico. Assim, deixo o relato despretensioso de um biciclista que passa o tempo a pedalar, não a escrever, não a filosofar, não sociologisar, não a antropologisar. E desculpem as gralhas, erros, pontuação e acentuação…não dá para tudo!

Seguem-se as primeiras páginas (presumo que relatos futuros sejam menores, pois a vida do pedal pode ser monótona – mas ainda não é!)

Ah, sobre Dawson talvez escreva depois. Para já sinto-me completamente incapaz de expressar o que a vila me transmite…

Ao primeiro dia criei o dia zero

À chegada a Inuvik, o tempo estava cada vez mais encoberto, ameaçando chover. Tinha umas últimas compras para fazer, como o repelente para ursos, gás, comida para vários dias, água e, no meio da febre consumista, ainda comprei um pneu suplente! Fui encher a bike de ar na bomba de gasolina e, de regresso à cidade, começava a orvalhar…passei mesmo junto ao acesso ao parque de campismo e, entre hesitações, decidi que não ia começar logo com uma chuvada e uma molha. Montei a tenda já com chuva. Só partiria no dia seguinte. Este seria o dia zero!

Estava a meditar no interior quando ouço um: “Hei biker”!? Estiquei o pescoço e deparo-me com o Jonh, um americano ruivo, com barba de 2 meses, todo impermeabilizado da cabeça aos pés. Tinha acabado de fazer a Dampster Hwy. Foi simpático e combinámos que nos encontraríamos daí a pouco na cozinha do parque, para me dar umas dicas sobre o caminho, comida e água.

Pintou um cenário bem árduo: que tinha de levar comida para todo o caminho; assinalo-me no mapa percursos de mais de uma centena de kms onde não havia água; falou-me do piso que, com chuva e lama, ficava duríssimo, não ciclável por vezes; falou-me ainda de uma zona onde o relevo era um autêntico carrossel. Muito animador…

No primeiro dia, cumpri

Por entre a neblina desmontei a tenda, arrumei a tralha e preparava-me para partir quando percebi que, ainda antes da 1ª pedalada, já tinha perdido o capacete, novinho em folha comprado em Edmonton!! Ficou por certo na biblioteca de Inuvik, ontem…

Antes de partir “bati à porta” do Jonh e disse-lhe que tinha um presente para ele. Na verdade é o guia da Dampster Hwy, um livrinho bem fixe de que tinha 2 exemplares. O gajo olhou para mim com um ar mais que duvidoso, perguntando-me se sempre ia partir. Disse-lhe que sim, se calhar também sem muita convicção, e ele lá rematou que durante o dia podia sempre voltar para Inuvik, pois era perto! I can do it, John, I can do it, retorqui duas vezes, mais para me convencer a mim do que a ele…

Comecei a pedalar, ainda parei na biblioteca a ver se lá estava o capacete mas só abria à 1h (era sábado).

Inuvik é uma cidade de 3500 habitantes feia, suja, húmida, de ruas enlameadas. Pelo menos foi o que vi. A evitar.

Pedalei em aquecimento, deixei o asfalto e entrei na Dampster Hwy, de terra batida, cuja placa dizia: Eagle Plains 356, Dawson City 767 e Whitehorse 1220. Era o que me esperava – ou que eu (achava que) esperava.

No primeiro dia contava pernoitar em Caribu Creek CG, 52 kms depois de Inuvik. Queria começar calmamente, pois não tinha feito qualquer treino prévio e no último ano devo ter pedalado menos de 200 kms. Esteve sempre nublado e as rectas infinitas na estrada de terra escura, ladeada de tundra, eram a minha única silenciosa companhia. Cruzei-me com dois carros no percurso e cheguei ao parque mesmo a tempo de montar a tenda antes da chuva começar. Diga-se que o parque é “self-registration”, o que significa que não tem nada. Ou melhor, duas toilets como infra-estrutura e os lugares para acampar com a respectiva mesa e o sempre presente barbecue. Fiz a primeira refeição de campismo (massa com atum! e ninguém reclamou). Bem, mas fiquei quase sem água. Apesar do rio correr a 20 metros, a água era barrenta. Havia uma caravana ao lado e quando alguém chegou de carro, fui lá pedir meio litro. Estava safo.

No segundo dia, superei(-me)

Apesar da curta presença nestas paragens, já há características que vão sendo habituais: orvalho, neblina, humidade e tenda molhada. Queria começar a pedalar de “madrugada” e às 6h da manhã fiz a primeira tentativa. Mas recolhi de novo aos aposentos, pois chovia bem. Nova tentativa e o mesmo resultado. Afinal, parece que não estou preparado para a aventura! Um exercício de introspecção, alguma racionalidade e saltei de casa. Afinal, estava à espera de quê? Apanhar 450 dias de sol!!? Saltei da tenda e já não chovia…

Uma das preocupações do dia era a água. Tinha 1 l e havia que teria de chegar até Tsiigehtchic, ao ferry que cruza o Mckenzie river, daqui a cerca de 80 kms. A estrada é totalmente plana, a única dificuldade é o piso enlameado que trava autenticamente o andamento. E não há piso por onde escolher: se mais na berma, afundam-se as rodas na terra arenosa, se escolho os rodados dos carros, parece uma caixa de ovos, cheia de buracos, fazendo vibrar tudo, especialmente o traseiro, que tenho de poupar.

Para minorar a perda de água, pedalava devagar e de corta-vento aberto, para aquecer o mínimo e não transpirar (poupar água). De repente lembrei-me ter lido algures que o Ferry só funciona até às 12h30. Se assim fosse já não passaria hoje. Chegaria com meia hora de atraso. Mas não, estava mesmo para partir com uma auto-caravana acabada de chegar. Entrei e logo me dirigi ao gabinete para onde entrara o “barqueiro”. Era Gwich’in e estava sentado a esculpir um pequenino barco em madeira. Perguntei-lhe se podia servir-me de água e, sem levantar os olhos do barco, disse que sim. A água era escura, sabia a terra mas devia ser bebível…para mim, foi. Como havia uma cafeteira com resto de café, perguntei se me podia servir. A resposta foi como a anterior e eu lá pus leite condensado numa caneca, café e…estava delicioso. Ainda não disse, mas as temperaturas rondam os 10 a 15 graus.

Depois de Tsiigehtchic, o meu objectivo passou ser chegar a Fort McPherson. Eram mais uns 70 kms, que dificilmente imaginara poder fazer, mas agora pareciam exequíveis. A paisagem melhorou um pouco, o sol até apareceu e o piso estava bom. O rabo é que ia reclamando…duas barras energéticas e as 7 últimas bolachas que ainda restavam de Edmonton foram as calorias necessárias!

O parque de campismo fica 10 kms depois de Mcpherson, já junto ao rio Peel. Na recepção estava um velhote a queixar-se dos ossos e do tempo…parece que é universal essa associação. A verdade é que me mostrou a cicatriz do joelho onde tinha sido operado e tinha mau aspecto…

O parque era excelente, com uns duches e wc impecáveis, tudo limpíssimo e aquecido. E eu era o dono daquilo tudo!! Deu para secar a tralha, o que é sempre um momento alto em qualquer dia e latitude. Não só pelo desconforto que é montar e dormir numa “cama” molhada, mas também pelo peso extra que se transporta.

Ao terceiro dia, vivi o sol e a paisagem

Fort Mcpherson é realmente o último ponto de abastecimento para o resto dos mais de 500 kms, até Dawson City. Como tal, tinha de comprar mais umas coisas: bolachas, conservas, talvez fruta e essencialmente pão. Pensei que as lojas abriam às 8h e às 7h55 já tinha feito os 10 kms do parque à povoação. Estava completamente desértica a única rua por onde se estende: a Mckenzie Ave. Encontrei, lá para o fim, um camionista que aquecia os motores daqueles monstros que, ao passarem por nós, fazem vibrar o chão e a bicicleta, e perguntei-lhe a que hora abria a mercearia. Respondeu “às 10h”. Está-se mesmo a ver o meu entusiasmo… Voltei ao campismo (mais 10 kms) e arrumei tudo, o que me levou cerca de 1 hora. Foi então que conheci o Mike, um inglês que estava a fazer a Dampster, mas de dawson para Inuvik. Dormiu clandestinamente no parque e disse-me que “ninguém” pagava nos campismos, excepto eu! Ainda lhe disse que este era tão bom que merecia mesmo ser pago…deu-me mais algumas dicas sobre o caminho, especialmente sobre um refúgio de caçadores, ao chegar ao Ogilvie river, e que pode ser um excelente local para pernoitar, pois não há parques perto. Preparava-me para voltar à vila quando me aparece o Robert, o guarda do parque, irmão do recepcionista de ontem, oferecendo-se para me levava à vila às compras e trazer-me de volta. Ainda estava a duvidar do meu inglês, mas não havia dúvida! Deixava tudo na recepção do parque e ia e voltava com ele. Foi excelente, pois já me imaginava a fazer 40 kms sem sair do mesmo sítio…

É tudo caríssimo: bolachas a 6$, pão de forma a 5$, ½ litro de leite com chocolate 3$, etc. mas um saco de plástico por 0,26$ é que me pareceu de mais. Pelo menos as laranjas eram deliciosas…. O peso na bicla é que aumentou muito – já ia para aí nos 55 kg.

O Peel river passa-se de ferry. Cheguei lá quase às 11h, mas só de lá sai passava do meio-dia. Estavam com as máquinas a prepararem o local de atracagem nas margens (sim, porque aqui o cais é de terra e vai e vem ao sabor da natureza) e demoraram uma eternidade.

Acabou-se a planície e começou a montanha. Os primeiros kms foram sempre a subir e a bem empinados. Ganhei na vista sobre o rio, Fort McPherson e o vasto planalto rodeado de montanhas azuladas…O sol ia apertando e a transpiração abundava, mas a paisagem finalmente correspondia às melhores expectativas. Até à fronteira com o estado do Yokon, ainda houve uma subida de cortar a respiração, mas aí, no topo, 360º de liberdade, natureza pura e pujante, esmagadora, silenciosa e imaculada.

A descida para o Rock River Camp Ground é praticamente sempre a descer, deslizando pelas encostas suaves do vale verdejante, vida e morte de centenas de caribus ali caçados ancestralmente, numa armadilha da natureza para onde os caçadores os conduziam. Uma espécie de Portas do Ródão, um funil…

O parque de campismo volta a ser self-registragion. O rio passa mesmo à ilharga, barulhento mas de águas límpidas, onde reponho o stock de água, entretanto reduzido a zero.

Ao quarto dia, passei o Circulo Polar Árctico e apareceu o Benfica

O dia começou límpido, verde, silencioso e de uma tranquilidade absoluta. O relevo era suave e o sol ainda não apertava mas já espreitava… Eu é que espreitava obsessivamente em busca de caribus ou especialmente ursos, pois era suposto ser terra deles, mas nada. Quarenta e poucos quilómetros depois do início da jornada chego ao círculo polar árctico. É mítico, pois claro, e fica num planalto de vistas grandiosas. É aí que peço para tirar uma foto a um casal de turistas. Pego no cascol do Benfica e o Cláudio faz um enorme sorriso e diz: Benfica, Portugal, és do Benfica? Excelente equipa!! E o diálogo foi por aí fora. Ele e a mulher, Bárbara, são italianos, de Parma e o gajo sabia muito do glorioso. Recordámos o Trapatoni e o penúltimo título, o Rui Costa, o Mourinho… Muito latinos, muito simpáticos.

Prossegui e recordo a descida para aí de 8 kms até ao Eagle River. Pura adrenalina, controlada para evitar danos mecânicos. Eagle Plains é um ponto estratégico na Dampser, tipo Canal Caveira. Todos param ali, pois não há outro ponto de apoio (gasolina, comida, café, dormida) entre Mcpherson e Dowson. Comi uma refeição decente (nunca tinha visto um hambúrguer duplo tão grande e que desaparecesse tão depressa do meu prato…uma cerveja custou 4$75 e 1,5 l de água, 4$ – precisava de 2 garrafas de 1,5l de água pois nos próximos mais de 100 kms não haverá…Continuei por mais uns 20 kms e acampei no único sítio aceitável. Ao longo da estrada não há locais aprazíveis ou sequer utilizáveis. È só vegetação densa…

Numa pequena reentrância acampei, pois estava a formar-se uma trovoada e não queria ser apanhado desprevenido pela chuva, que não tardou a cair forte e feio.

Ao quinto dia, a estrada fugiu para o rio

Hoje foi o dia de todos os testes. Comparado com hoje, os dias anteriores têm sido um passeio pela marginal, em dia de sol e brisa fresca pelas costas.

Como não parava de chover, tive de voltar a arrumar tudo à chuva. Notou-se logo no peso, pois transportava kgs de água nas coisas molhadas – o próprio colchão estava molhado e o fundo da tenda não resistira à lama.

O dia estava complemente cerrado, não se via nada, primeiro com chuva miudinha, depois mais grossa e cada vez mais ventoso. O piso estava completamente enlameado e progredir era difícil, mesmo numa velocidade baixa. Mas não muitos kms depois do início houve um momento solene: um moose e duas crias hesitavam em atravessar a estrada, a não mais de 30 metros de mim. Saquei logo da máquina, enquanto a mãe, presumo, me observava de cabeça empinada. Fiquei quieto há espera que algo acontecesse. Creio que não serão ofensivos nem perigosos, mas são do tamanho de um cavalo e, apesar de não terem cornos, se quiserem podem ser perigosos. Em sentido contrário vinha um carro e os três atravessaram a estrada e desapareceram na tundra.

Prossegui, com aquela imagem impressa na mente a dissolver-se na chuva, no vento, na intempérie, no esforço, até nada restar.

Numa zona de repouso, estavam dois contentores abertos. Não hesitei e entrei no primeiro. Vesti uma camisa seca, comi e fiquei mais confortável. Mas como era num alto, o vento zunia violentamente contra o contentor e a chuva caía impiedosa, empurrada pelo vento. Devo ter ficado na expectativa para aí uma hora. Perscrutava o céu e o horizonte, à procura de uma aberta, uma nuvem menos carregada, mas nada. Não se vislumbrava qualquer melhoria. Decidi então jogar com o psicológico: veríamos quem era mais teimoso, se eu se o senhor tempo. Era um jogo perigoso, especialmente porque sabia que hoje voltaria a não poder contar com campismo oficial. A minha melhor chance era a cabana de caçadores, escondida na floresta, onde a estrada “tocaria” o rio Ogilvie, tal como o Mike me explicara.

Fiz-me de novo à estrada e a minha principal preocupação era agora a bicicleta. Com a chuva, areia e lama, fazia barulhos por todo o lado, especialmente as mudanças, que passei a usar o mínimo.

A determinado passo cruzo-me com um camião, que para. O motorista abre a janela, olha-me com ar de pena e pergunta-me se não quero voltar para trás, para Eagle Plans. Disse-lhe, determinado, que nem pensar. Prosseguiria. Desejou-me sorte e foi-se com um sorriso…Se viesse no “meu” sentido, não teria hesitado um segundo! Deslocava-me a 9 km/h, o que diz tudo.

Por volta das 5h, com quase 9h nas pernas, pareceu-me vislumbrar sinais de cedência do inimigo: as nuvens pareciam mais claras e mais altas. Na linha do horizonte pareciam mesmo esbranquiçadas e nas minhas costas até havia uma clareira quase azulada. Pouco depois surgiram as Ogilvie Moutains no horizonte e ao chegar ao Ogilvie-Peel view point, já tinha uma vista total, quase sem chuva. A paisagem volta a ser grandiosa.

A estrada desliza agora suavemente, contornando as encostas dos montes. Segue-se a descida de mais de 6 kms para o Ogilvie river e a jornada está a terminar da melhor maneira. Só falta descobrir o refúgio, esperar que tenha lenha e que possa secar tudo, especialmente os sapatos, totalmente encharcados e sem substituição.

No fim da descida vejo 3 carros parados e penso: devem estar a observar ursos ou algum outro animal. Seria a cereja… mas quando me aproximo ouço o barulho ensurdecedor da água jorrando montanha abaixo. A estrada desaparece à minha frente e apenas um rio de lama flui violentamente. Os tipos estão como eu, a olhar perplexos e sem saber o que fazer.

Ao fim de 1 hora já se vê a estrada, ainda que completamente cortada, com mais de meio metro de água. Mas o problema nem seria o ½ metro de água, é a força visível do caudal. Passa um arbusto arrastado na corrente e nada o trava. Ao fim de quase 2 horas decido voltar para trás até encontrar um local sofrível para acampar. Não é fácil, não só porque está tudo encharcado, mas porque a estrada termina onde a tundra começa… Aproveito uma pequena reentrância na berma, procuro endireitar o chão um pouco, a pontapé e monto atenda. Ficou muito desnivelada, estava molhada, mas não chovia. O jantar hoje foi uma mega sandes e …tentar dormir. A cabana devia estar a 200 metros…

Ao sexto dia, o sol voltou

O pequeno almoço foi o resto da sandes do jantar!! Como estava tudo encharcado, especialmente os ténis da bicicleta, calcei os “normais”. Estavam secos e eram confortáveis. E conforto era o que necessitava neste momento. Avancei para o sítio onde a estrada estava cortada e constatei o óbvio: a água continuava a correr, mas não mais de 25 ou 30 cms e com um caudal fraquinho. Era só ter coragem para me descalçar, pôr os pés à lama e avançar. E assim fiz. A água estava gelada mas bastou calçar as meias secas e senti logo todo o conforto. Avancei calmamente e poucos metros depois lá estava a cabana do meu sonho e pesadelo. E logo de seguida, a estrada novamente a servir de leito ao rio…voltei a descalçar-me, a sentir água gelada e as pedras que parecia agulhas a espetar…como 20 metros à frente se repetia a cena, caminhei descalço sobre as pedras.

A partir daqui foi sempre a melhorar. A estrada, salvo a lama e o piso degradado, muitas vezes parcialmente levada pela água, estava transitável. Não muitos kms depois cruza-se comigo um carro que para. Era uma empregada da assistência e manutenção da estrada. Fez-me um interrogatório sobre de onde vinha, se tinha passado os rápidos, como tinha feito, se havia carros, se a estrada estava muito danificada. Respondi-lhe a tudo e parecia muito impressionada, nomeadamente com a minha loucura/atrevimento em passar os rápidos, como lhe chamava. Explique-lhe que foi fácil, que o caudal era fraco, mas não parecia convencida.

Durante o resto do dia, era só camiões, niveladoras, retroescavadoras e outros apetrechos numa azáfama a repararem a estrada. Ao chegar à primeira ponte a sério com o Ogilvie, constatei que tinham cortado o acesso ao troço de onde eu vinha. Não deixavam passar ninguém dali até Eagle Plains. Provavelmente teriam de esperar ali um dia ou dois. Afinal tive sorte em estar a meio do troço, pois caso contrário também eu deveria ficar bloqueado.

A estrada e o rio Ogilvie correm lado a lado, no vale que se vai estreitando mais e mais. Vêm-se os sinais da força da chuva por todo o lado: água e lama dois lados da estrada, as encostas esventradas, com árvores caídas, os arbustos do rio todos vergados quando não partidos. Parece que há três anos a estrada não sofria danos desta envergadura.

Decido para em Engineer creek CG. Já tinha feito para aí 50 kms e apetecia-me uma boa refeição, secar as coisas e descansar. Mas ao chegar ao parque, percebo que é mais um self-registration. Tem toilet, cozinha e nada mais. O ponto de água potável indicada no guia da Dempster não é mais que um caminho para o rio, que neste momento é o tal lodaçal. Como contava com água, esgotei toda a que trazia…erro! Assim já não podia ficar ali nem cozinhar o almoço desejado. Bom, dei meia volta e…havia uma caravana a fazer a manobra para ir também embora. Pedi-lhes ½ litro de água mas deram-me 1!! Estava safo, podia continuar até arranjar água e encontrar um sítio fixe para acampar. Acabou por acontecer ao km 175 da Damspter. Mesmo junto ao rio, um razoável reentrância, mesmo com fenos e ervas para ajudarem ao colchão. E pude ir lavar a tenda ao rio, estender tudo ao sol, ver a humidade a desaparecer e a cor a mudar. Tomar um banho meio desajeitado na água gelada, dar mesmo banho à carriça, fazer um mega jantar e contar as estrelas

Ao sétimo dia, o sol continuou e a Dampster quase a chegar ao fim…

Os 105 kms de hoje foram percorridos na zona da chamada Blackstones Uplands. E assim é, zona montanhosa de pedra negra, montanhas pontiagudas, carecas a partir do meio. A primeira parte do dia não teve estória, apenas as dificuldades iniciais de adaptação do traseiro ao selim. Sim, não tenho falado disso, mas está massacrado. Valha-me o milagroso halibut. Já descobri para aí umas dez posições de me sentar, mas nenhuma é perfeita ou sequer sofrível ao fim de dez ou vinte kms! As pernas vão dando conta do recado. Aliás, sinto-as a mudar…novos músculos a aparecerem, e a doerem por vezes, nomeadamente junto aos joelhos. Até ao km 40 a jornada teve pouco interesse. Pedalar sempre a subir, embora suavemente. Por acaso até irrita: há uma ilusão (ou desilusão!) de óptica, pois parece que é a descer mas basta parar de pedalar e pára tudo…claro, o rio não sobe e estou a mover-me em sentido oposto ao rio. Desta vez consigo um sítio aprazível para almoçar. Uma saída da estrada, um pequeno largo, uma árvore onde posso encostar a bike e até sentar-me ao sol e fazer um pic-nic. Não vou dar pormenores mas garanto que terminei com duas bolachas que é suposto terem 90 calorias cada, mais uma mão cheia de sultanas e, pasme-se, sem grainhas. Foi um achado estas sultanas. 400 grs que comprei em Fort McPherson e que ainda duram!

Depois de almoço, a jornada foi sempre em crescendo. A paisagem no Canyon fechado por onde andei durante a manhã deu lugar a um vasto planalto que se foi abrindo e trazendo as verdes montanhas de volta. Cruzei-me com o Karl-Heinz Ranz, um fotógrafo alemão que só faltou converter-me em modelo. Estava mesmo impressionado com um ciclista nestas latitudes, com este tempo e ainda por cima de Portugal. Para alem das fotos, ainda me deu chá e trocámos e-mails. Prometeu mandar-me algumas fotos…uma afectividade muito pouco alemã, diria.

O Chapman lake não é conhecido só por ser o maior da Damspter e por ter várias espécies de peixe, mas também pela tragédia da “patrulha perdida”. Em 1910, a Royal Northwest Mounted Police enviava mais uma patrulha regular entre Dawson, Fort McPherson e o Beaufort Sea. Só que desta vez, e apesar de seguir pelos trilhos dos Guich’in, não levou um guia índio. Perderam-se e morreram todos. Até à última patrulha, em 1921, foi sempre obrigatório ter guia índio e não houve mais incidentes…

Pouco depois entra-se no Tombestone Territorial Park. No que resta das Ogilvie Mountains, ainda se vêm salpicos de neve nos cumes mais altos e protegidos. Os lagos sucedem-se a água brota barulhenta por todo o lado. O verde inunda o horizonte infinito, com a linha sinuosa da estrada, única ferida aberta na natureza esmagadora, a conduzir o olhar. O lago Two Moose ficou para trás, mas de moose, nem rasto.

Já estava com quase 100 kms nas pernas e só queria ultrapassar o North Fork Pass, o ponto mais alto de hoje, acima dos 1250 metros, para iniciar a descida para o campismo.

O parque, apesar de “self-registration”, sem duche, é muito acolhedor, bem situado, com boas infra-estruturas e está cheio de gente. Os suíços com que me cruzei pela primeira vez há 4 dias, no Rock River CG, são de novo meus vizinhos. Parece que viram Grizly Bears ontem… sorte a deles e azar o meu. Deve ser do repelente – adivinham!!

Para culminar o dia, o parque tem um pequeno circuito pedestre onde pude ver e fotografar, em menos de um km, imensa variedade de flora. Fotografei flores em homenagem ao amigo Nelson!!

Ao oitavo dia: Dawson City. I did it Jonh!

Dawson era um ponto de interrogação no plano de viagem. Afinal ficava 84 kms (42+42) “fora de rota”. Ao chegar ao entroncamento da Dampster com a Klondike Hwy, ou virava para a esquerda (Whitehorse, o meu próximo ponto no mapa), ou para a direita. Decidi-me (só desta vez!) pela direita e rumei a Dawson City. A paisagem era desinteressante, menos até do que a da manhã, que já era parca em surpresas ou grandiosidade. Era a descer, o que me levava constantemente a pensar no regresso… Cada vez estava menos certo da decisão tomada…

A povoação fica literalmente no fim da estrada, numa pequena planície, de frente para rio Yucon, rio largo de água barrenta, e de costas para a montanha. À primeira vista é igual às demais: geométrica, com ruas e avenidas numeradas. Mas na realidade é completamente diferente. A menor das diferenças é que se as avenidas vão da second (a firts, aqui chama-se front street) à oitava, as ruas são “Duke”, “Kink”, “Queen”, “Princess”, “York”, mais umas quantas, todas em terra batida.

A cidade parece retirada do museu de memórias dos westerns. Cada casa parece estar ali por uma razão própria, com uma história própria e única, contendo uma alma própria. Apetece fotografar cada uma… O posto de rádio local, ainda não percebi se transmite através de ondas hertzianas, se é apenas pelo som que sai pela porta aberta, que deixa ver um jovem de auscultadores na cabeça exultando num frenesim. O banco! Imaginem um banco em Lisboa (ou qualquer outra cidade “normal”). Situa-se inevitavelmente no rés-do-chão de um qualquer prédio de cimento, com ar seguro e muitos andares. Aqui, o banco tem varanda, onde uma senhora lê ao entardecer, tem cortinas nas janelas, não tem alarmes, nem portas ou janelas reforçadas…mesmo não se tratando de um banco de cultura!!

Ao chegar ao cais, sim, porque a estrada acaba mas o mundo é redondo, para apanhar o ferry para o outro lado, onde fica o parque de campismo, vejo uma azáfama enorme de pequenas lanchas cheias de pessoas, que parecem fazer corridas para jusante. Até parece que o rio é uma estrada com duas faixas de rodagem, pois vão pela margem direita e regressam pela esquerda. Parece-me uma actividade suspeita para uma povoação tão pequena. É então que o barqueiro me informa que está a decorrer o moosehide gathering, um festival que ocorre de dois em dois anos, coincidindo com este fim-de-semana. Como o festival é a jusante, toda esta movimentação é de pessoas que vão e vêm. Do programa consta muita música, animação para os jovens, artesanato, missa, fogo de artifício. Enfim, são os festejos da terra, cujo último dia – Domingo – conto não perder.

Talvez o mais emblemático de Dawson seja o Diamond Tooth Gerties, o primeiro casino a ser legalizado no Canadá, e o facto de aqui ter vivido o prospector, aventureiro e escritor Jack London. Mas para mim, o melhor de Dawson é cada casa que a compõe e a simpatia do Peggy’s Pub e das empregadas.

I did it, John, I did the Dampster Hwy…

P.S. Até daqui a 550 kms, em Whitehorse (até lá, são só montanhas e campismo…)

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